Metade de um inteiro

Nunca gostei de coisas mornas. O quase nunca me conveceu. Sou da turma do Fernando Pessoa: sê por inteiro. Algo naquela linha 8 ou 80. Quer ser frio? Seja frio. Quer ser quente? Seja quente. Mas não seja morno, please. Porque eu não vou ser morna, sabe? Eu sou leonina com Lua e Vênus também em leão: eu não sei ser pela metade!

Então, se estiver me dando as suas mãos quentes para eu segurar, não me dê apenas metade delas. Não vou dar só metade do meu colo para você, então quando eu estiver deitado no seu, não quero ficar só com metade dele. Caio Fernando Abreu sabe bem o que quero dizer: quando estiver comigo, seja todo você. Corpo e alma. Às vezes, mais alma. Às vezes, mais corpo. Mas, por favor, não me apareça pela metade. Não quero migalhas dormidas do seu pão. Não quero restos e raspas. Quero só o que for completo.

E quero hoje. Amanhã? Amanhã a gente vê no que vai dar. Vamos construindo o presente. O futuro a gente deixa para depois. Por que não é a ideia de fim que me incomoda. É a ideia de não ser completo que me destrói. Então se você ficar, fique por inteiro. Se quer que eu fique ao seu lado, fique ao meu. Não estou falando só fisicamente, compreende? Quero algo mais profundo. Não sei ser rasa. Pelo menos não com você. De você eu só quero TUDO. Por que eu estou te dando TUDO.

Repito: sou leonina com Lua e Vênus em leão. EU NÃO SEI AMAR PELA METADE, como diria a minha grande confidente Clarice. Se você quiser metades, me avisa agora. Não me deixa acreditar no que não existe. Eu entreguei meu coração nas suas mãos. Você disse que entregou o seu nas minhas. Mas será que entregou completamente? Se a entrega não foi verdadeira e completa, eu faço a devolução. Não por não te amar. Mas porque não sei me entregar se não for completamente.

Se for durar um dia, dois, um ano, sete anos, uma vida inteira, não importa. O tempo não é importante. O que importa é que seja intenso, verdadeiro, inteiro, profundo.

Agora me diz: você vem comigo ou não?

Metade de um inteiro

Come chocolates, pequena

“quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
quanto mais personalidades eu tiver,
quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
… estiver, sentir, viver, for,
mais possuirei a existência total do universo,
mais completo serei pelo espaço inteiro fora.”

Minha conexão com Fernando Pessoa foi instântanea. Passei a amá-lo no exato momento em que conheci seus versos, na escola, durante as aulas de Português. Aprendi a recitar TODOS os versos de “Tabacaria”. Assim como ele, sinto que não consigo viver apenas dentro de mim. Nunca quis ser apenas uma ou fazer apenas uma coisa. Explorar todas as possibilidades sempre foi uma ambição.

Talvez por isso, nunca tenha me encontrado ou me encaixado em algum lugar completamente. Sempre quis ser/fazer/ter várias coisas ao mesmo tempo. Já tentei até criar heterônimos pra mim. Nunca concluí essa tarefa. Quem sabe um dia eu dê nome a todas essas personalidades que vivem aqui dentro…

Da mesma maneira em que gostaria de ser veterinária, também gostaria de ser jornalista, ter uma banda, fazer algo como atriz e artista plástica, estudar história ou ciências sociais…

Conhecer a Austrália, mas passar por Londres, Barcelona e morar em uma tribo indígena…

Participar de missas na igreja, ir a trabalhos que usam ayuhasca, frequentar terreiros de umbanda, centros espíritas e templos budistas e hare krishna…

Ou seja: eu não caibo – não gosto do som e da grafia dessa palavra, mas é a que melhor expressa, em português, o que eu sinto sobre isso – dentro de mim mesma!

E ao mesmo tempo que isso pode ser bacana, por outro lado é um porre: eu nunca tô totalmente satisfeita e sempre fica aquela sensação de “estar faltando algo” e de não ser suficiente o que eu tô fazendo, o que eu tô vivendo. Não, eu não tô querendo virar uma conformista ridícula e estúpida, só tô querendo dizer que não é um mar de rosas ser tantas em uma só. Aquela saudade eterna de tudo que não vivi é real e intensa.

Mas dentro de todas essas possibilidades, existe algo que nunca perco: a vontade de mudar o mundo, de melhorar o ambiente em que vivo. E é esse caminho que vou seguindo: independentemente do que eu escolher, quero seguir mudando tudo aquilo que não faz sentido pra mim.

Pelo bom, pelo justo e pelo melhor do mundo. Siempre!

 

Come chocolates, pequena

Ex-pirar

Uma tarde chuvosa. Não, não era garoa. Era chuva mesmo. Das fortes. Coisa normal para os paulistanos no verão. Preso no escritório da empresa, eu precisava dele. Estava ali em cima da mesa de vidro, solto, sozinho, ao lado da 6ª xícara de café do dia. Apanhei-o dali. Seu tamanho? Menor do que a palma da minha mão. Seu formato circular permite que percorra facilmente meus dedos.

Andei da janela até a mesa com a impaciência e a ansiedade tomando conta de mim. Ele permanecia em minhas mãos, que começavam a soar. Achei melhor devolvê-lo à mesa. O papel fino que o envolve não resistiria a todo aquele suor por muito tempo. Amassaria, quebraria. Em seu interior, os pedaços escuros num tom amarronzado poderiam começar a se perder.

Olho pela janela e não vejo um único ser. Caso a cidade não tivesse alagado por conta da chuva que já tinha virado tempestade, certamente várias pessoas estariam passando ali embaixo e algumas delas teriam o que eu tenho e estariam sentindo um certo prazer. Eu poderia ser uma delas. Mas não, o mundo acabando, eu preso no escritório com mais cinco colegas. As paredes me impedindo de sentir um dos maiores alívios possíveis para um homem como eu. Quando você sente ele em sua boca, sente algo maior dentro de si.

Nenhum daqueles cinco homens presentes usam ele para se aliviar, para sentir prazer, para relaxar. Volto à mesa, e passo a observá-lo novamente. Penso que gostaria mais dele se não fosse todo branco. Poderia ser vermelho em um dos lados. O lado mais encorpado. O outro lado? Eu diria, frágil. Fiquei ali um bom tempo analisando a textura quase transparente do papel em uma ponta, a mais comprida, e a mais puxada para branco gelo do outro, bem curta. Uma espécie de círculo as divide.

Quando me dei conta, as coisas tinham voltado um pouco ao normal. Pessoas começavam a circular lá embaixo, o céu parecia que ia abrir. Enfiei ele no bolso. Desci as escadas o mais rápido que pude sem que pudesse mostrar aos cinco o quão desesperado eu estava para descer. Coloquei a mão no bolso para pegá-lo. Na outra mão, o fogo já o aguardava. E então fiz como Fernando Pessoa: saboreei no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Ex-pirar

Metades & Alices

Então ela volta para namorada dela e eu volto para minha e cada uma segue em uma direção. Simples assim. Não teria por que não ser simples, não é mesmo? Cada uma vai para o seu lado e acabou. Certa vez ela me falou sobre o episódio de Friends em que o Ross casa com a Emily, mas no altar fala o nome da Rachel e depois de muitas temporadas, acaba ficando mesmo com a Rachel. Foi na segunda-feira após a nossa fuga épica, quando ficamos conversando por celular enquanto eu pensava no que fazer da minha vida, sentada sozinha no Ibirapuera. Ela tinha saído do trabalho e ido almoçar em casa, aí ligou a TV e estava passando exatamente esse episódio. Ri desse acontecimento insano, como se o universo nos falasse que seríamos no Rachel e Ross. Hoje não vejo mais dessa maneira.

Não que eu não queira mais ver. Eu só não consigo enxergar o que eu enxergava antes. Ela continua sendo a mesma pessoa pela qual me apaixonei sentada naquele bar. Aquela com a qual tomei inúmeras doses de vodka. Aquela que me apresentou Carol Teixeira e Brollies & Apples. Aquela que me fez sentir borboletas no estômago a cada ligação. Aquela que me fez ficar com sorrisos bobos no rosto durante o dia inteiro. Mas alguma coisa mudou. Se não dá para ser, se não dá para ter, por que insistir?

Não sei. Às vezes estou conversando com outras pessoas e de repente a maneira como dizem algo ou agem de certa forma, me lembram o jeito dela,  às vezes é como se todas as pessoas passassem a agir e a falar como ela.  Aí começo a pensar em como eu projeto e exteriorizo as coisas. Vejo coisas que nem sequer estão ali, pelo simples fato de querer vê-las. Lembrei do Caio: “Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não consegurás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele(…)”

Não sei. “Não sei amar pela metade. Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão”, assim como a Clarice. Se não dá para ser por inteiro, que não seja. Nada de pedacinhos. Migalhas dormidas do teu pão? Raspas e restos não me interessam mais. Nem pequenas porções de ilusões. Talvez tenha um pequeno espaço para mentiras sinceras. Nada mais. Pode parecer hipocrisia eu falar isso quando estou oferecendo exatamente o que estou recusando para a pessoa com a qual estou tendo um relacionamento sério. Não quero dar só restos, migalhas e pedacinhos para ela. Por isso quero recusar todo e qualquer resto, migalha e/ou pedacinho.

Não sei. Quero algo que seja completo. “Sê inteiro em tudo que fazes”, como Fernando Pessoa. Não dá para fingir que não aconteceu nada, mas também não dá para continuar no meio-termo. Somos pessoas de extremos, lembra? Ou somos ou não somos. E já que não podemos ser, é melhor não sermos, não é mesmo?

Não sei. Ou melhor, acho que sei: ficarei com aquele sentimento do-que-poderia-ter-sido-e-não-foi. Quase um Manuel Bandeira em “Pneumotórax”. Shit. Enquanto escrevo isso ela acaba de me mandar um e-mail com um texto do Paulo Mendes Campos. Chama “Para Maria da Graça”. Vou ler. Depois continuo a escrever.

Li. Ele escreve para Maria da Graça falando sobre o livro Alice no País das Maravilhas. Sempre achei que essa não fosse uma história necessariamente feita para crianças. Descobri já faz um tempo que a realidade é louca e que seu eu não descobrir um sentido na loucura acabarei louca. Continuo não sabendo, mas “a alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida toda uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos”, como diz o conto.

Ah, me perdi toda nas divagações. É, eu sempre sou a Alice. Talvez estar/ser perdida não seja tão ruim assim. Bom-humor é a chave de tudo. Quer saber? Vou dar umas boas gargalhadas agora e esquecer toda essa merda que acabei de escrever. Afinal, já dizia o querido Caio que às vezes as palavras traem o que a gente sente. Não quero que elas me traiam, então vou parando por aqui.

Mais um pouco de Caio antes de terminar, vai: “Temo que seja outra vez aquela coisa piedosa, faminta, as pequenas-esperanças, mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias…”

E assim esqueço que não queria restos, migalhas e/ou pedacinhos. E aí lembro que só quero viver e aproveitar tudo o que a vida tem para me oferecer sem restrições, limites e imposições. Minha inconstância é incrível, não?

Metades & Alices

123 anos de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa faria 123 anos hoje, se estivesse vivo. Conheci sua obra lá pela 7ª série, nas aulas de Literatura. Claro que já havia ouvido falar sobre ele e lido algumas coisas. Mas nunca tinha entrado em contato com suas palavras realmente. De cara, me apaixonei pela estética modernista. Apesar de gostar bastante do Alberto Caeiro, principalmente no seu Guardador de Rebanhos V, onde ele diz “O que penso eu do mundo?/Sei lá o que penso do mundo” e do Ricardo Reis com o seu maravilhoso “Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu exagera ou exclui/Sê todo em cada coisa/Põe quanto és/No mínimo que fazes/Assim em cada lago a lua toda/Brilha, porque alta vive”, quem me conquistou mesmo foi Álvaro de Campos. Quando li “Tabacaria” pela primeira vez, me apaixonei perdidamente. Eu também tinha em mim todos os sonhos do mundo. E continuo tendo.

 Ainda fico na janela do meu quarto, que é um dos milhões do mundo que (quase) ninguém sabe quem é. A rua continua inacessível a todos os pensamentos, sempre “impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa”. Certos dias me vejo perplexa, pensando, achando e esquecendo logo em seguida. “Sensação de que tudo é sonho”, né? E claro, a permanente ideia do “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!”. Entende por que o Álvaro de Campos é o MEU heterônimo? Só que ao contrário dele, talvez eu creia em mim, ainda assim, penso que “Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”.

 Gosto do som da frase “Escravos cardíacos das estrelas”. Nunca soube muito bem o que ela significa, mas pronunciá-la é uma delícia. Eu também conquisto todo o mundo antes de levantar da cama e quando acordo ele é opaco. Gostaria de comer chocolates com a verdade que a pequena come. Após fazer elogios à ela, ele diz “Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!”. Eu quero ser tudo, quero inspirar sem me preocupar com o moralismo conservador das pessoas! Sim, meu coração é um balde despejado. “Fiz de mim o que não soube e o que podia fazer de mim não o fiz”, talvez. Talvez eu tenha feito o que não soube, mas não volto atrás. Tipo Brollies & Apples, “não sou outra por um triz”.

 Impossível ler esses versos livres e não acender um cigarro saboreando nele a “libertação de todos os pensamentos”. Decorei “Tabacaria” inteirinho naquela época. Hoje não lembro todos os versos sem ler, mas toda vez que releio, vem aquela nostalgia gostosa de quando descobri um dos escritores que mais mexeram comigo.

 Parabéns a um dos maiores escritores de língua portuguesa que já existiram. Como editor, crítico literário, ativista político, tradutor, jornalista, inventor, publicitário e publicista, ele desdobrou-se em vários durante sua vida, seja por meio dos heterônimos ou pelas diversas atividades que exerceu. O próprio se auto-denominou-se um “drama em gente” – qualquer semelhança com a minha pessoa seria mera coincidência?

 Sua última frase, escrita em inglês, antes de morrer de cirrose aos 47 anos, foi “I know not what tomorrow will bring”. Eu também não sei o que o amanhã trará, Pessoa. Mas acredito que parte do que ele trará, está em minhas mãos. E estou tentando fazer com que ele traga as melhores coisas possíveis.

123 anos de Fernando Pessoa